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Impactos do endividamento no comportamento do brasileiro

Análise por Dra. Valéria M. Meirelles – Psicóloga do Dinheiro

“As dívidas impactam na vida social dos endividados, tiram a concentração no trabalho e interferem nas relações familiares e conjugais”

Abordado costumeiramente sob a ótica da economia, o endividamento também apresenta uma face bem cruel nas mudanças de comportamento. Como mostra a psicóloga Valéria Meirelles, da Serasa, uma pessoa endividada entra num ciclo de negatividade que começa com a confiança abalada, passa por isolamento social, perda de emprego, separação conjugal e pode provocar outros transtornos psicológicos e comportamentais ainda mais graves, como o desinteresse pela vida.  

Graduada em Psicologia pela PUC, com especialização em Psicologia Econômica e Psicologia do Dinheiro, é autora da tese "Atitudes, Crenças e Comportamentos de Homens e Mulheres em Relação ao Dinheiro ao Longo da Vida Adulta", que apresentou em seu doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Valéria é uma das maiores – e raras - autoridades brasileiras no assunto.  Atua como psicoterapeuta, supervisora, palestrante e facilitadora de workshops envolvendo temas relativos a dinheiro, família, saúde financeira e carreira, além de projetos de Educação Financeira voltados à população de baixa renda e de saúde financeira em instituições públicas e privadas. 

Convidada pela Serasa para ajudar a produzir e avaliar a Pesquisa Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2022, realizada em parceria com o Instituto Opinion Box, ela conversou na semana passada com mais de 50 jornalistas e influenciadores de todas as regiões do país sobre um drama que, cada vez mais, extrapola a seara do bolso e do cartão de crédito para se incluir nos capítulos do comportamento e da alma humana. Na sequência, a especialista fez uma abordagem exclusiva à Serasa, cujos principais tópicos estão abaixo: 

Assista | Impactos do endividamento no comportamento dos brasileiros - com Valéria Meirelles

Pergunta: No estudo, 60% dos entrevistados revelam que acompanham os valores das faturas de crédito e gastos futuros para evitar o aumento dos débitos. Esse seria um novo comportamento dos brasileiros?

Valéria: Esse comportamento reflete uma maior tomada de consciência dos brasileiros, cada vez mais cuidadosos com o uso do dinheiro. A postura reflete, também, um efeito da variedade de informações sobre o tema nas diferentes mídias, mostrando a relevância de manter o controle sobre as próprias dívidas, o que favorece sentimentos de segurança e de bem-estar. A difusão e expansão de conhecimentos de Educação Financeira certamente atuam de forma positiva ao deixar as informações sobre os múltiplos usos do dinheiro literalmente ao alcance das mãos, facilitando processos de entendimento e pagamento de muitas dívidas. 

Também se percebe que, atualmente, 57% dos brasileiros endividados conversam com os membros familiares sobre a importância de reduzir os gastos gerais da casa. Isso parece ser um bom sinal?

Valéria: É importante a inclusão de toda a família como protagonista no uso do dinheiro e dos recursos, pois essa atitude incentiva a responsabilidade coletiva. Gosto de considerar a família como uma “tutora de resiliência”, um núcleo capaz de produzir uma blindagem emocional na pessoa afetada pelo endividamento. Mesmo que 51% dos respondentes confessaram sentir vergonha de si mesmo, a maioria confiou na família para revelar sobre a difícil situação financeira ou a respeito de uma dívida específica.  

Os resultados da pesquisa valorizam a família como o principal suporte para esse momento de dificuldade econômica.

Valéria: Isso mesmo. Os dados mostram o que muitos pesquisadores da área de família costumam afirmar: a família é um valor estruturante para o brasileiro, um porto seguro, uma referência importante. Os resultados tabulados na pesquisa também mostram que as relações estão mais transparentes e que, a despeito das dificuldades impostas pelo endividamento, algo mais forte (sobrevivência dos filhos e qualidade das relações e dos vínculos) prevaleceu. 

Valéria, 51% dos entrevistados confessam sentir vergonha por terem contraído dívidas ou terem contas atrasadas a pagar...

Valéria: O atraso das dívidas numa sociedade onde o dinheiro está associado a sucesso, implica diretamente em sentimentos de alguma falha ou incompetência, inadequação. Neste sentido, é natural para o endividado de boa-fé sentir vergonha. 

Além disso, os homens sentem mais vergonha que as mulheres, pois na sociedade são muito mais exigidos em termos de desempenho financeiro. Eu diria que um homem endividado é visto muito mais como um “perdedor” do que nós, mulheres, por uma questão histórica e patriarcal. Ou seja, é mais aceitável uma mulher endividada do que um homem.  

Para 83% dos respondentes, a preocupação com as dívidas gera insônia.

Valéria: É muito comum a perda do sono nessas situações, pois aspectos biológicos são uns dos primeiros sintomas de preocupações com dívidas, especialmente quando estas podem levar à inadimplência. A ansiedade vai invadindo a vida da pessoa que busca incansavelmente uma solução para zerar sua situação. Ela passa a viver com pensamentos voltados ao futuro, não consegue relaxar e consequentemente, não dorme também. Quando são dívidas voltadas à escola dos filhos, à faculdade,  aluguel ou condomínio, ou seja, contas básicas, os sentimentos se agravam. 

As dívidas impactam a vida social dos endividados?

Valéria: Muito. Dependendo do volume das dívidas e o risco que a pessoa corre, ela não consegue mais sair com amigos, por exemplo. Por não ter dinheiro, deixa de fazer programas e isso gradativamente a isola. 

E geram pensamentos negativos?

Valéria: Os pensamentos negativos surgem em função de emoções decorrentes da situação de endividamento, especialmente aqueles que envolvem grandes quantias, perdas patrimoniais ou do próprio nome da pessoa, medo do nome sujo na praça. Um dos mais comuns envolve a depreciação de si mesmo, no qual a pessoa não se reconhece mais capaz de administrar competentemente seu dinheiro. Ela acaba, dependendo do valor das dívidas, se percebendo com medo do futuro e sem esperanças de mudança. Daí o desencadeamento de pensamentos negativos tanto em relação a si quanto à sua família. 

E quais os reflexos de concentração no trabalho por conta das dívidas?

Valéria: Aqui vale o mesmo princípio da insônia e dos pensamentos negativos, agravado por estar entre colegas que, aparentemente, não tenham dívidas. As comparações passam a ser inevitáveis. Sendo um caso de superendividamento, o foco da pessoa torna-se a resolução do mesmo, comprometendo diretamente seu desempenho profissional. Incluo aqui alterações de humor e irritabilidade, que podem comprometer sua relação com colegas, levando em casos extremos à demissão. 

A pesquisa constatou que esses problemas de concentração se refletem também fora do ambiente de trabalho. 74% dos endividados alegam dificuldades para realizar tarefas do cotidiano.

Valéria: Os problemas são semelhantes à situação do ambiente de trabalho, porque a preocupação com as dívidas se torna o foco da vida da pessoa, impedindo ou comprometendo que ela realize até tarefas mais básicas. Por exemplo, esquece o ferro de passar ligado, não  lava direito as louças e por aí vai... 

As dívidas impactam nos relacionamentos com familiares e amigos?

Valéria: Também. Quando uma pessoa está tomada pela preocupação com as dívidas, especialmente as de grande impacto em seu cotidiano, que a privará de alguns confortos, ela pode ter dois tipos extremos de comportamento: se afastar e se isolar ou conviver, mas com irritabilidade, o que pode levar a discussões e em casos mais graves, a violência doméstica. Algumas pessoas, em casos extremos de superendividamento, acabam recorrendo ao uso de álcool e outras drogas, agravando ainda mais a situação. 

E geram brigas entre casais, provavelmente...

Valéria: Quando um dos cônjuges ou companheiro (a) está endividado, isto acaba impactando diretamente na relação, tanto em termos de projetos de vida quanto no dia a dia. Mas vai depender do significado da dívida e do contexto no qual ela foi contraída. Por exemplo, se esta dívida é decorrência de uma infidelidade conjugal, natural  que ela impactará muito mais. 

Em casais, podem existir acusações de incompetência, falha na  decisão “x” que levou ao endividamento. Tanto que muitos divórcios acontecem em função de questões financeiras, de má gestão de recursos por parte de um dos  cônjuges ou até de ambos. 

Nestas situações especialmente, histórias das famílias de origem, vivências passadas vêm à tona, evocando lembranças negativas. E muitos casais não conseguem seguir juntos após o episódio da dívida. 


Embora a família seja o principal suporte para este momento de endividamento, 57% dos entrevistados responderam que se sentiram muito mal por ter de pedir dinheiro emprestado a familiares. Haveria alguma contradição aqui?

Valéria: Não há contradição. As famílias possuem suas regras, valores, crenças e expectativas sobre seus membros. Ao pedir dinheiro emprestado a um familiar, especialmente um específico, bem como o tipo de relação estabelecida, é como se o endividado atestasse incompetência ou fracasso perante aquele sistema, de maneira que não há como se sentir bem. 

Mas muitas pessoas nem conseguem pedir ajuda a alguém, acreditando que resolverão a situação sozinho.

Valéria: Dado o significado da dívida e o volume dela ou sua inicial possibilidade de pagamento, a pessoa acredita que será capaz de resolvê-la. Ela realiza o que Richard Thaler, Nobel de Economia, chama de “contas mentais”, articulando idealmente as situações de maneira a se organizarem, mas que na prática não é real. Por exemplo: “vou pedir adiantamento de férias, aí quito parte principal da dívida”, mas a pessoa se esquece que tem de pagar a matrícula da escola dos filhos. O drama só aumentará.  

E passam a sentir vergonha da condição de endividado...

Valéria: É um dos sentimentos mais comuns, pois a pessoa não se sente capaz de dar conta da própria vida, uma vez que o dinheiro, principal ferramenta para lhe garantir dignidade, está em escassez ou sob risco. Em uma sociedade onde grande parte do sucesso de uma pessoa é medido pelo aspecto financeiro, não ter dinheiro suficiente leva não apenas a sentimentos de vergonha bem como de baixa autoestima e redução do senso de autoeficácia. 

A vida pode perder o sentido, caso a pessoa passe a acreditar que só trabalha para pagar contas?

Valéria: Não há uma única resposta a esse questionamento. As respostas à pesquisa mostram que há estilos financeiros opostos. Há os que lidam com as dívidas no estilo “Devo, não nego, pago quando puder” e vamos viver o que há de possível no momento, com o que ainda tem de bom. E há outros, talvez mais rigorosos, com outros valores e crenças ou com dívidas que levaram a perdas consideráveis, se percebem sem motivação para a vida.